Existe um caminho?

(uma reflexão sobre o filme Avatar 2, o Caminho da Água, com spoilers)

 

Nesta semana tive oportunidade de assistir o novo filme da franquia Avatar de James Cameron, que tem como título “O caminho da água”.

Apesar de suas mais de 3 horas de duração, saí da sala de cinema com a certeza de que nenhum minuto foi desperdiçado. O filme não me cansou ou entediou. Ao contrário, eu passaria mais três horas, facilmente, no deslumbrante mundo de Pandora, vivendo essa história emocionante e reflexiva.

Foi uma experiência de imersão nesse ambiente, ao qual já fomos apresentados no primeiro filme, em 2009, e que se expandiu de forma bela e envolvente. Para além das belas florestas e montanhas, com os exuberantes seres que as habitam, agora conhecemos o mundo aquático, a partir da convivência com a tribo do mar/recife, da imersão em sua forma de vida e do seu conhecimento. Através deles fomos apresentados à fauna e à flora desse ambiente, acompanhando-os em suas aventuras submersas.

Os elementos da narrativa são verdadeiros tesouros a serem garimpados e observados.

Logo de início, é mostrado o colar de contas construído por Neytiri, como instrumento para relembrar os acontecimentos desde o final do último filme. Por ele soubemos que, após completada a transição de Jake para o mundo Na’vi, incorporando-se definitivamente à comunidade, eles formaram uma família. Tiveram vários filhos e adotaram mais alguns. Esse núcleo familiar foi a base sobre a qual foi construída a ação dessa segunda etapa.

Essa ação começa quando, após algum tempo vivendo em paz, o planeta Pandora é novamente invadido pelo “Povo do Céu”, os humanos oriundos da Terra, que já chegam trazendo grande destruição. Ficamos sabendo das tentativas dos humanos de dominar aquele ambiente e da resistência dos Na’vi, que vem sendo bem sucedida, até que ressurge o personagem do Coronel Miles, morto no final do primeiro filme. É esclarecido que a tecnologia avançou para permitir que a consciência e a memória dos humanos sejam implantados em um avatar, versão humana do corpo Na’vi, e o coronel, assim como vários de seus asseclas, pôde então utilizar esse subterfúgio para retomar a consciência em um ser mais forte e capaz. Contudo, ao contrário do que aconteceu com Jake, submetido a um intenso aprendizado a partir da convivência com os Omaticaya, os novos avatares nada compreenderam sobre o modo de ser e de viver desse povo, tampouco de sua estreita interação com esse mundo e com todos os seres que o habitam, com quem mantém cooperação e amizade, e com a Eywa.

O coronel e seus asseclas iniciam uma perseguição inclemente a Jake, sua esposa e aos filhos que tomaram conhecimento de sua existência. Isso se deve à liderança que eles exercem na resistência, e sobretudo por uma vingança pessoal buscada pelo coronel em relação àqueles que venceram sua forma humana. Essa foi, a propósito, sua primeira ação ao chegar a Pandora: buscar o local onde pereceu na batalha final, tomando conhecimento de como tudo aconteceu.

Após o inevitável encontro entre o avatar do coronel e os Sullys, Jake percebeu a ameaça que essa busca constituía à sua família, e buscou o exílio em uma outra comunidade, o povo Metkayina, que habita o Recife.

Recebido, a princípio, com perplexidade e medo, diante da evidente perspectiva de que ele seria caçado e que o povo que o acolheu teria inevitavelmente que se envolver nessa guerra, os Sullys passaram a morar com essa comunidade. Tiveram, para tanto, que se adaptar e aprender a viver em um ambiente totalmente novo. A rapidez dos movimentos na floresta e o domínio da terra e do ar, muito pouco ou quase nada valia naquele ambiente. Era preciso aprender a nadar, respirar no mundo subaquático e dominar o ambiente e os animais marinhos.

Ao mesmo tempo em que nos apresenta todo esse ambiente, sobretudo a partir da perspectiva dos jovens Sully, o filme nos mostra as suas dificuldades de adaptação e as pequenas vitórias. Mostra, ainda, as dificuldades de socialização que viveram por serem diferentes e não ter as características anatômicas e os dons necessários. A situação traz uma importante reflexão sobre xenofobia e o respeito à diferença.

Aos poucos, e com muito esforço, tudo foi sendo aprendido, numa jornada que se deu com contratempos e sobressaltos, como no caso em que o filho Lo’ak quase pereceu ao ser deixado em um ambiente desconhecido e hostil, tendo sido salvo da morte certa pelo rejeitado Payakan, um Tukum, espécie que se assemelha às baleias. Ao ver sua mãe ser caçada e morta por humanos, Payakan liderou um contra ataque que levou alguns Metkayina e Tucuns a morte, tendo ele próprio perdido uma das nadadeiras. Isso fez com que ele fosse exilado do grupo, considerado indesejável e renegado. Estabeleceu-se, de imediato, uma profunda conexão entre os dois.

Embora Jake já seja parte dos Na’vi, ainda tem muitos elementos humanos, e ainda pensa como um. Essa é uma de suas fragilidades, que precipitou os acontecimentos. Ao ver que sua filha adotiva, após passar por uma experiência de conexão profunda com Eywa, apresentou convulsões, rejeitou os conhecimentos da medicina sagrada daquele povo e buscou o auxílio da ciência humana, chamando os amigos, que prontamente o atenderam indo de helicóptero até o local. Tal providência revelou sua localização para aqueles que os procuravam, o que iniciou uma perseguição implacável às tribos do povo do Recife, que foram ameaçados e tiveram suas casas queimadas.

Mesmo assim, as tribos invadidas não revelaram o que os humanos buscavam. Frustrada a tentativa, uma nova estratégia, ainda mais cruel, foi intentada: a caça aos Tukum, animais semelhantes às baleias,  que têm uma profunda conexão com os Metkayina.

De acordo com os estudos apresentados pelo biólogo marinho que acompanha a expedição, os Tukum são mais inteligentes que os humanos e os Na’vi, o que é comprovado pelo número superior de conexões cerebrais. Também tem forte sensibilidade e manejo das emoções, ampla capacidade de comunicação e desenvolvimento de uma linguagem apurada, além da capacidade de compreender, apreciar e mesmo compor música. Vemos que eles conseguem se comunicar com os Metkayina, estabelecendo uma ligação forte com esse povo. Além disso, cada Tukum se conecta mais diretamente com um integrante da comunidade, estabelecendo uma ligação semelhante a das chamadas almas gêmeas. Estabelecem uma linguagem que lhes permite conversar, entendendo e sendo compreendidos.

No filme, os Tukum vem sendo caçados por terem, em seu crânio, uma substância dourada, capaz de paralisar completamente o envelhecimento humano. Essa substância se torna hiper valiosa, chegando a valer milhões de dólares. As duas caçadas, então, se conjugam, e a princesa dos Tukum torna-se a primeira vítima dessa aliança mortal.

A partir daí, a guerra anunciada se deflagra. Os Metkayina partem em defesa dos Tukum, ameaçados pela ambição dos humanos, atacando os invasores.

A partir de certo momento, contudo, emerge o conflito pessoal entre o Coronel e os Sully. Mantendo presos alguns de seus filhos, o coronel atrai a atenção de Jake para a arena pessoal, concentrando a luta com sua família e deixando todos os demais em segundo plano.

A batalha é vencida pelos Sully, que, contudo, sofrem uma perda imensurável: o filho mais velho de Jake e Neytiri, Neteyam, perece na batalha, para desespero de seus pais, que, apesar da dor intensa, não deixam de criar forças para fazer o que é preciso.

Voltas e reviravoltas acontecem até que a ação se encerra e a próxima etapa é a difícil saída do barco em naufrágio, que se torna possível com o protagonismo dos jovens, sobretudo de Kiri, que consegue comunicar-se com os animais e plantas, mostrando o caminho que leva à saída.

Ao final, é realizada a cerimônia em que Neteyam é restituído à Eywa, com um importante ensinamento sobre a morte como um elemento natural e inevitável. Todos os seres são criados da água e a ela retornam, como parte de um ciclo de integração à Eywa, compreendido e respeitado por esse povo.

Alguns pontos merecem destaque no belíssimo filme.

Mais uma vez, vemos a beleza da conexão existente entre os seres de Pandora, e a integração com Eywa, em mais uma de suas expressões, agora no ambiente da água. Em contraposição, a crítica ao ser humano e à sua sanha exploratória é evidente. Ao imergir na história e compreender sua mensagem, somos levados a torcer contra nossa própria espécie, ao perceber que os humanos apenas transferiram para um novo planeta seu poder destruidor. Tendo esgotado os recursos da Terra, tornando impossível a vida no planeta, buscam explorar e agredir, da mesma forma, a Lua de Pandora.

Impossível não lembrar que a tragédia fictícia que se abate sobre Pandora, os Navy e todos os demais seres, já se abateu, de forma real, sobre muitos povos em nosso próprio planeta. Quando o “povo do céu” era aquele que chegou pelos oceanos, em seus navios imponentes, com armas, presentes, vírus e cobiça de riquezas e vidas, trazendo morte e destruição e reduzindo a pó povos inteiros, desequilibrando e destruindo os ecossistemas e negociando vidas, terras e recursos naturais. Inevitável lembrar das baleias e inúmeros outros animais caçados, mortos cruelmente e reduzidos à extinção por meros interesses comerciais. Poucos restaram para contar essa história, que não acabou. Os povos indígenas e os ecossistemas que restaram seguem ameaçados e agredidos, diariamente, enquanto observamos o degelo das geleiras, as mudanças climáticas ainda não aceitas e compreendidas, a aniquilação de inúmeras espécies de fauna e flora, a destruição de mulheres de quilômetros de floresta, a exploração predatória de minérios, madeira e outros recursos naturais, o comprometimento irreversível de rios e de toda a vida que deles depende, inclusive a humana.

O segundo filme da franquia Avatar antecipa a inviabilização da vida na Terra e nos deixa uma grande reflexão: para a humanidade, ainda existe um caminho?

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