Hoje eu estava pensando a respeito de um livro que eu li quando era criança, que é bem conhecido na literatura brasileira e já foi transformado em novelas, filmes, peças teatrais e tudo o que tem direito: Meu pé de laranja lima. Mais recentemente, inclusive, foi lançado um filme bem fiel à história original, com José de Abreu.
Esse foi, na verdade, o primeiro livro mais adulto que eu li, quando tinha apenas uns 8 a 9 anos. Até então eu tinha lido apenas livros e histórias infantis. Embora ainda seja um livro indicado para a literatura infanto-juvenil, já tem um conteúdo mais denso, e, o meu orgulho na época, ”mais de 100 páginas”, o que abriu as portas para o meu gosto por ler, que mantenho até hoje.
O livro conta a história do menino Zezé, suas aventuras e desventuras. Zezé tinha uma vida dura e pobre. Tinha muitos irmãos e seu pai estava desempregado. Tinham, portanto, as mais diversas limitações: poucos recursos, dificuldades para frequentar a escola (inclusive quanto ao uniforme e a reação de outras crianças à sua pobreza). Ele era também um menino bastante levado, que vivia aprontando. Por causa disso, e como era típico da época, levava muitas surras e castigos de seu pai, às vezes até exagerados e desproporcionais, tendo em vista que ele “descontava” suas amarguras no filho, até por considerar que ele não correspondia aos sacrifícios que eram feitos em favor dele.
Para sobreviver nessa atmosfera tão dura, Zezé buscava auxílio e alento em sua imaginação. Vivia em seu quintal, que imaginava maior do que realmente era, e tinha como melhor amigo o seu pé de laranja lima, a quem deu o nome de “Minguinho”. Tinha com ele longas conversas e brincadeiras, em felizes devaneios, seu refúgio do mundo real.
Até que num determinado momento ele começou a construir um relacionamento com um português, um adulto já velho e solitário, conhecido por “Portuga”. Ele era português, e é apresentado no livro como um homem amargurado, que vive sendo alvo de troça das crianças, e que reage de forma negativa e violenta. Tinha um carro, pouco comum entre os personagens do livro, que tinha uma roda aparente atrás, que funciona como estepe. Um dos desafios das crianças era tentar subir no carro dele e pegar uma “carona”, agarrados a essa roda. Conseguir isso era tido como um gesto de grande coragem, e fazia do menino alguém respeitado.
Um belo dia Zezé resolve tentar. Era um jeito de elevar sua moral perante o grupo. Ele espera o Portuga entrar no carro e sobe na roda. O carro começa a andar e por algum tempo parece que está tudo bem, que ele vai conseguir. Zezé está exultante. Até que o carro pára e desce o Portuga. Apanha Zezé pelo colarinho e pelos cabelos e aplica-lhe uma bela lição, com direito a uma boa surra, diante de todos. Uma humilhação pública. Zezé sai dali arrasado, destruído, e com uma imensa raiva do Portuga.
Mas de algum modo a coragem, a iniciativa ou algo que o português viu no menino tocou-o, e ele começou a cercá-lo e buscar aproximar-se. A partir daí, começou a desenvolver-se, entre aqueles dois seres humanos tão diferentes mas igualmente amargurados e solitários, uma bela amizade. Começou devagarinho e foi crescendo, até que eles eram inseparáveis. O Portuga levava Zezé para passear, dava a ele coisas inacessíveis dentro de seu mundo (doces, refrigerantes e outros pequenos agrados) e preenchia suas horas com muito carinho. Apesar de tudo, por causa da humilhação que havia sofrido, Zezé preferia não revelar a seus amigos e familiares a relação que tinha com o Portuga. Eram momentos que ficavam entre eles, e que ele compartilhava apenas com seu pé de laranja lima. Zezé vivia, então, entre os dois mundos: a grande amizade com o Portuga e a triste realidade de sua vida familiar e escolar, e as conversas com Minguinho.
Um evento marcante foi o dia em que Zezé pediu para andar na roda do carro (na verdade não me lembro se a iniciativa partiu dele ou do próprio Portuga). para ele foi a realização de um sonho, e um momento de extrema alegria.
Até hoje eu considero a amizade dos dois talvez a relação mais pura, terna e profunda que eu tive oportunidade de conhecer na literatura.
Tudo parecia ir muito bem, e eu me perguntava como essa situação ia se desdobrar, se eles continuariam e até assumiriam essa bela bela amizade, e como as pessoas, inclusive o pai de Zezé, reagiriam a isso. Se o POrtuga até não seria capaz de dar um auxílio para o pai dele, já que tinha condições financeiras, e transformar a vida de seu grande amigo.
Até que um evento inesperado e trágico muda tudo: Zezé recebe a notícia de que o Portuga sofreu um acidente e morreu. Seu carro foi colhido pelo trem que passava na cidade, e ele teve uma morte instantânea e dolorosa. Zezé não acredita quando recebe a notícia. Corre até a linha do trem e vê o estrago que foi feito. Não teve tempo nem para se despedir do amigo, ou expressar para ele o carinho que sentia. E chora sem parar. Mas não pode nem consegue dizer para os outros o motivo de sua tristeza, já que a amizade entre os dois não era conhecida pelos demais. A tristeza do menino aflige os pais, que acabam decidindo se mudar, preocupados e em busca de alternativas de futuro para eles e para a família.
E o livro termina assim, com Zezé na iminência da mudança, sofrendo horrivelmente a perda de seu grande amigo, tendo que se despedir de Minguinho e à espera do que a vida havia de lhe trazer.
Pela dedicatória e epígrafe do livro, acredito que a história seja verdadeira. Até porque só a realidade pode nos trazer tamanha surpresa, tamanha e inesperada dor. Um final como esses não poderia ser concebido por um escritor ou roteirista. Apenas a vida, a mais surpreendente e “traiçoeira” das escritoras, seria capaz de nos surpreender dessa forma.
Esse livro foi, na verdade, um grande trauma para mim. Lembro que quando terminei de ler estava absolutamente chocada, e experimentava uma situação de perda comparável à de Zezé. Minha primeira reação, emocional e irracional, foi começar a ler o livro de novo, como que na esperança de que o final fosse diferente dessa vez. Mas não foi, e não poderia ser. Não era o final que eu queria e que eu escolheria, mas foi o final que o escritor daquele livro concebeu, e eu não poderia mudar, qualquer que fosse o esforço que fizesse nesse sentido. Não cabia a mim escolher.
E assim é mesmo a vida: não podemos alterar os resultados das escolhas que já foram feitas. As palavras dolorosas já foram ditas, os erros já foram cometidos. A flecha já deixou o arco e caminha para acertar o alvo, e não importa o arrependimento de haver lançado. O que ocorreu já não nos cabe mudar. Embora fiquemos surpreendidos, doloridos, desalentados, revoltados até, não podemos alterar essas escolhas.
Às vezes ainda é possível antever o resultado desastroso, como quem chuta uma bola de forma atravessada e vê que na trajetória indesejada ela inevitavelmente vai quebrar seu vaso mais precioso. Mas o chute já está dado, e não é mais possível voltar atrás. O resultado, triste e doloroso, já é inevitável.
Mas há muito o que se pode mudar. As escolhas do presente, as ações do futuro.
E nisso devem estar concentrados todos os esforços: em compreender o que aconteceu, aceitar o inevitável e mudar o que é possível. Rever as estratégias, planejar novas ações, construir algo novo, e mudar o resultado.
Mesmo que o placar esteja desfavorável, enquanto o cronômetro estiver rodando, é possível mudar o resultado, virar o jogo e sair vencedor. Nunca é tarde demais para tentar.
“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.”.