Um dos meus filmes favoritos é antigo e baseado num livro clássico norte-americano, chamado “O Sol é para Todos”. É a história de Atticus Finch, um advogado designado para atuar na defesa de um negro acusado de estuprar uma mulher branca. Desvenda o preconceito e os costumes da época sob a ótica de sua pequena filha, Jean Luise, conhecida como “Scout” (por ser escoteira). Mostra também ela e o irmão descobrindo o preconceito e os costumes excludentes da época durante as férias de verão.
Atticus Finch é um advogado renomado, viúvo, que tem um perfil humanitário (voltado para o que hoje chamamos de “direitos humanos “). Ele trava uma guerra contra toda a cidade em defesa do acusado, é ameaçado e xingado publicamente, mas não abandona o seu trabalho, oferecendo a ele a melhor defesa que pode. Consegue, diante do Júri, demonstrar claramente sua inocência, provando cabalmente que o culpado pela agressão contra a moça é o seu próprio pai, também branco. A verdade, contudo, não é aceita pelos presentes, e o Júri condena o acusado, mesmo contra todas as evidências oferecidas pelo seu advogado. Após a proclamação da decisão, o acusado, agora declarado culpado, ignora os pedidos de seu advogado, de que mantenha a calma pois ainda utilizará todos os recursos possíveis para reverter a decisão. Num gesto desesperado, empreende uma fuga a pé, e é alcançado e alvejado pelos seus agressores, representantes da lei no Estado. Morre um inocente, vítima de um sistema opressor, agressor e homicida.
Para mim a cena mais bela do filme, e uma das mais belas que eu já vi no cinema, é quando Atticus está sentado sozinho na sala do Júri, após a proclamação do resultado. O Juiz, Promotor, acusado, autoridades e a maior parte da plateia que assistia calorosamente já se retiraram. Ele está ainda consternado com o resultado, que contrariou todos os seus esforços. Já antevê um final trágico, embora ainda não tenha uma noção de que forma ele irá tomar (com a condenação a morte do acusado já era certa, ele apenas antecipou na tentativa de fuga. Nesse momento já havia tido uma tentativa de invasão da delegacia onde ele estava preso para linchá-lo, que foi contida pelo advogado, e uma nova tentativa de agressão era iminente). Tenta reunir os últimos traços de ânimo para continuar lutando. Nos fundos da platéia, em um lugar reservado, estão os negros que assistiam ao julgamento, e a filha dele também está com eles. Quando ele finalmente se levanta para sair, todos os negros que ainda estavam presentes ficam de pé. Ela pergunta a razão, e um dos negros lhe diz “Estamos de pé porque seu pai está passando”. O reconhecimento de uma autoridade que está muito além do poder temporal investido aos homens que na maioria das vezes não a merecem.
Atticus merecia essa homenagem. Conheço também algumas pessoas que a merecem, que tive e tenho o prazer de honrar (e claro que você está entre essas pessoas).
Essa é uma história que tocou profundamente o coração das pessoas, mesmo numa sociedade hipócrita e doente como a dos Estados Unidos. O livro foi escolhido como o mais importante de todos os tempos. O filme recebeu inúmeros prêmios. E numa votação que foi feita há algum tempo, Atticus Flinch foi escolhido como o maior herói de todos os tempos. Maior que o Super Homem, o Batman, o Thor ou o Homem de Ferro. Maior que o heróis de guerra americanos e tantos outros cultuados pela nação. Isso para mim foi surpreendente, e me deu a esperança de que ainda haja algum tipo de valor naquela sociedade, de reconhecimento pelo que é bom e belo.
Para mim, toda autoridade é moral. As pessoas são capazes de reconhecer essa autoridade, que independe de hierarquia, de poderes temporais. Quem nunca viu alguém num ambiente de trabalho que é mais líder do que o próprio chefe? Ou, ao contrário, um poderoso que é escarnecido e desprezado por todos, não importa o quanto tenha poder? Quantas vezes os poderosos admiraram e se renderam a pessoas de grande valor, por quem demonstravam apreço até quando estavam em posição humilhante, como a de prisioneiros, ou opositores? Que eram ouvidos e respeitados, e utilizaram isso em favor de muitas pessoas, promovendo o bem ou pelo menos evitando mal maior?
Uma coisa que me chama a atenção também nesse livro/filme é o título original, que não foi bem traduzido para o português: “To kill a mockingbird”. Ele se remete a uma passagem do livro que eu realmente gosto. Mockingbird é o nome de um pássaro que não tem uma tradução exata em português. Alguns traduzem como sabiá, outros somente como “passarinho”. É um pássaro muito comum naquela região, e é pequeno e frágil. E foi essa a razão da escolha do nome. Numa passagem do livro alguém diz que é um grande pecado matar um ser tão frágil, tão indefeso, e ao mesmo tempo tão inofensivo. Alguém incapaz de fazer mal a qualquer outro ser. Que existe apenas para alegrar um pouco os ambientes e as pessoas com sua beleza ou seu canto. A sua inocência é tamanha que o torna totalmente indefeso, e faz qualquer agressão contra ele parecer muito mais grave. O maior dos pecados.
E isso me faz sempre pensar sobre as pequenas preciosidades de nossa vida. Pequenos momentos, cheios de beleza e significado, que nos enchem de beleza e alegria. Que não tem um grande significado, mas que, ao mesmo tempo, representam tudo. Que são de uma fragilidade imensa, e de uma pureza sem fim. Coisas que não vão ser lembradas em livros, não vão ser contadas em filmes sobre as nossas vidas, mas que na verdade são o maior significado delas. Incluo aí coisas diversas, como o seu tempo com os seus filhos, uma corrida na praia, um almoço com pessoas queridas, uma noite linda com alguém que se gosta, um passeio num belo jardim ou um por do sol visto da janela. Momentos preciosos e tão frágeis, aos quais não damos a menor importância. Quando temos que tomar uma decisão na vida, sobre os rumos que seguiremos, pensamos em muitas coisas, no cargo que ocuparemos, em quanto dinheiro ganharemos, no trabalho que faremos, na casa que vamos morar, mas não pensamos nos pequenos momentos que preenchem e preencherão a nossa vida. Nos nossos afetos, nos nossos pequenos prazeres, nessas pequenas oportunidades que fazem tão bem para a nossa alma e daqueles com quem convivemos. E que são, muito mais do que as grandes coisas, o nosso legado e a razão da nossa felicidade.
Eu me lembro de uma frase que diz mais ou menos assim: “Felizes é o que nós somos, muito tempo depois”. Porque esses pequenos valores, esses pequenos momentos, esses tesouros, não são percebidos por nós. Ignoramos o seu valor e a sua importância, até que os perdemos. Mesmo em relação às pessoas, é muito comum que em momentos estressantes de uma relação nos esqueçamos completamente deles. Que estejamos sempre focados nas coisas que nos incomodam, nos problemas que são sempre grandes, invencíveis. E esquecemos que na verdade amamos e valorizamos as pessoas pelas pequenas coisas. Pelo primeiro sorriso que recebemos de manhã, pelas palavras carinhosas no momento em que nos sentimos mal, pela companhia no lanche da tarde ou nos momentos tensos do trânsito, por saber que pode contar com aquela pessoa para resolver problemas que vão desde um desconforto físico ou emocional até uma noite em claro no hospital cuidando de alguém, por ser a primeira pessoa de quem se lembra para compartilhar uma notícia, grande ou pequena, triste ou alegre, ou para comemorar uma conquista.
Muitas vezes, esperamos pelas grandes coisas das nossas vidas, e não sabemos valorizar o que é pequeno. Esperamos aquele trabalho que vai nos fazer provar o nosso valor, quando na verdade ele é provado pelas pequenas ações do dia a dia, em cada pequeno trabalho que fazemos. Esperamos o grande amor de nossas vidas, o príncipe encantado ou a princesa ideal, enquanto ignoramos ou não valorizamos aquela pessoa que está ao nosso lado, dando o melhor de si em cada gesto, e nos amando da melhor forma que pode, simplesmente porque não atende a um determinado padrão que pensamos ser o ideal. E esperamos pelo que ainda virá, pelo que ainda está para chegar. Eternos insatisfeitos.
Da mesma forma, buscamos honrar as grandes autoridades, mas cada pessoa que está ao nosso lado, e com quem convivemos, merece ser honrada e respeitada. Merece ser tratada com a mesma atenção e apreço que a maior autoridade. Especialmente aqueles mais próximos, e com quem contamos. Em cada um existe um mundo de desafios, de heroísmo. Não sabemos o que cada pessoa enfrenta para chegar ali e estar ao nosso lado, dando a sua pequena contribuição para que o nosso dia possa ser melhor. E muitos valem mais do que qualquer autoridade temporal.
Eu já quis grandes coisas em minha vida: ser grande, fazer grandes coisas, viver grandes momentos, coisas monumentais, fazer a viagem de minha vida, o trabalho mais gratificante. Hoje percebo que o dia mais feliz é o que eu vivo hoje, a pessoa mais importante é aquela que está ao meu lado naquele exato momento, a viagem mais importante é a que eu faço agora, mesmo que seja só de João Pessoa ao Conde, para a praia de Coqueirinho. Que cada trabalho merece minha atenção e dedicação, tudo o que eu tenho de melhor para dar. Com isso, vou jogando as minha sementes pela vida, colhendo os meus frutos de cada dia, e espero que um dia, ao olhar para trás, consiga ver um grande jardim florido, que ilumine a minha vida e a das pessoas que puderam e podem ter contato com as diferentes paisagens por onde passei e passarei.
Para finalizar, quero deixar o meu poema predileto, de Fernando Pessoa, pelo seu heterônimo Ricardo Reis, que fala muito sobre isso também
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.