Eu li recentemente um livro que considerei muito interessante, e a curiosidade me dominou. Embora simples e despretensioso, traz algumas questões relevantes.
O livro chama-se “A fera em mim”. Ele se remete ao conto, e mais exatamente ao filme da Bela e a Fera. Conta a história do Príncipe Adam antes de se tornar a fera, como era a vida dele e o que aconteceu para que fosse lançado nele o feitiço que o transformou em um monstro aos olhos das outras pessoas.
A história diz que, como sabemos do próprio filme, o príncipe era mimado e arrogante. Era muito bonito e galanteador, e conquistava as moças do reino sem esforço, prerrogativa que usava sem responsabilidade. Conheceu uma bela moça e ficou noivo dela. Era apaixonado por sua beleza e por seu porte real, e fazia muitos planos ode ser feliz ao lado dela.
O livro conta também que ele era o melhor amigo de Gaston, que no futuro se tornou seu maior opositor. Eles cresceram juntos e compartilhavam o gosto por caçadas e aventuras. Eram inseparáveis. E foi Gaston que arruinou sua felicidade ao denunciar sua jovem noiva, Circe, afirmando que ela não tinha a linhagem nobre que alegava. Que se tratava, na verdade, da filha de um humilde criador de porcos, um pequeno fazendeiro sem posses e sem nobreza. O príncipe ignorou a advertência a princípio, mas por muita insistência de Gaston acabou acompanhando-o ao lugar em que alegou que ela vivia, apenas para confirmar a veracidade do que Gaston afirmava. Encontrou-a com vestes simples, diferente do que costumava se apresentar, com um balde na mão, em sua atividade de cuidar dos porcos. Ficou chocado! Não aceitou que isso pudesse acontecer. Dirigiu-se a sua noiva e proferiu contra ela as piores humilhações. Disse que jamais poderia considerar a possibilidade de casar-se com a filha de um humilde criador de porcos, e que qualquer sentimento que poderia ter por ela esvaiu-se diante daquela repulsiva visão dela cuidando dos porcos. Que o que sentia por ela agora nada mais era do que repulsa e rancor. Na mesma noite a moça foi ao castelo e pediu o perdão e uma nova oportunidade ao Príncipe. Trazia em sua mão uma rosa, que pretendia ofertar, mas ele apenas a humilhou ainda mais, sem nenhuma dó. Ela, então, se revelou: era a mais nova de quatro irmãs bruxas, e tinha sim, linhagem real. O que ele vira fora apenas um meio de testar o seu verdadeiro amor. E ele falhara. Ela e as irmãs lançaram sobre ele um feitiço (o que já conhecemos): que ele seria amaldiçoado, e que se transformaria num monstro, e que todos os habitantes do castelo se tornariam seres inanimados e amaldiçoariam o príncipe e teriam contra ele um amargo rancor. Que a estrutura do castelo perderia a graça e elegância e se tornaria sombria e dura, e que se tornaria um lugar abandonado e assustador. Deu a ele a rosa e disse que, se não aceitara a sua oferta e o seu pedido de perdão, ela se tornaria a marca de sua maldição: que ele tinha até o seu aniversário de 21 anos para conhecer o amor verdadeiro, para amar e ser amado por alguém, e selar esse amor com um beijo. Que se não conseguisse a rosa murcharia, perderia as suas pétalas e ele se tornaria aquele monstro para sempre.
Ela foi embora, assim como suas irmãs, e o príncipe procurou se recobrar dos efeitos daquela noite. A transformação não se tornou evidente a princípio. O tempo passou, ele seguiu sua vida em meio às caçadas e aventuras com Gaston, e, por sugestão deste, resolveu dar um baile para que todas as moças do reino viessem ao castelo e ele pudesse escolher uma noiva. Nessa noite ele conheceu e escolheu a princesa Tulipa Morningstar, uma jovem de extrema beleza, mas sem qualquer dote de inteligência ou atitude. Não se interessava por livros e não tinha pensamentos ou ocupações próprias, sendo seu desejo apenas permanecer ao lado de alguém que a pudesse fazer feliz. Ela pareceu ideal para o príncipe pelos dois aspectos. Não queria alguém que pensasse por si ou que tivesse qualquer interesse que não fosse a sua própria pessoa. Uma mulher vazia e obtusa lhe parecia o ideal. Ela sorria a cada afirmação que fazia, o que lhe deixava ainda mais bela e encantadora, e em sua ausência não tinha quaisquer outras preocupações além de cuidar e preparar a s mesma e o necessário para o futuro enlace.
Os dois se tornaram noivos, e tudo parecia caminhar muito bem. Mas os efeitos do feitiço já se faziam sentir. O príncipe sentia a dureza e amargura em sua alma. Percebia-se envelhecido, e quando contratou um pintor para fazer o seu quadro chocou-se com o resultado, que revelava em linhas de expressão e na dureza de sua expressão a transformação que ainda tentava esconder (numa passagem que se remete ao livro “O retrato de Dorian Grey”, de Oscar Wilde, um livro que vale também um texto como esse, que um dia qualquer vou me dedicar a escrever).
Quando já se aproximava o casamento, a princesa foi até o castelo do Príncipe, que recebeu-a da melhor forma que podia. Já estava impressionado com os efeitos da maldição, que ainda negava, mas que já se tornava mais evidente. Tentou, com a ajuda de seus fiéis escudeiros do castelo, criar uma atmosfera romântica e acolhedora para a princesa, na esperança de despertar o amor que quebraria o feitiço. E ela o amava. Mas ele começou a demonstrar rompantes de fúria e de arrogância, que a assustavam e deixavam triste e insegura. Chorava inúmeras vezes, num desalento sem fim.
Uma noite ele criou um clima romântico para poder beijá-la, selar o compromisso e quebrar o feitiço. O beijo aconteceu, até mais de um, mas não foi o suficiente. Nesse momento os seus companheiros já começavam a se transformar em objetos inanimados, o castelo adquiria ares assustadores e sua aparência já revelava as sombras de sua alma.
Afinal, quando percebeu que não conseguiria quebrar o feitiço, humilhou a princesa e a expulsou de seu castelo. Não compreendeu que a “culpa” por isso não era da princesa. Ela o amava com toda a sua alma, mas ele não era capaz de amá-la na mesma medida. O feitiço não foi quebrado porque ele não conseguiu sentir amor.
A princesa, ao retornar à sua casa desalentada e humilhada, não conseguiu suportar a dor e se atirou de um penhasco. Foi, contudo, salva por uma das irmãs da bruxa Circe, que a resgatou, ainda que tenha cobrado por isso um alto preço.
O resto é a história que já conhecemos: após um tempo o príncipe conhece Bela, que vem ao seu castelo para resgatar seu pai que havia sido aprisionado, assusta-se com o príncipe mas afinal se apaixona por ele, e é correspondida por um amor verdadeiro. A maldição, afinal, se quebra e ele volta a ser o Príncipe Adam. Os companheiros e o castelo também se transformam. Os dois se casam e são felizes, como nos contos de fadas.
Essa estória traz uma alegoria bem interessante, e que se remete a vários pontos que já tive a oportunidade de abordar em outros momentos.
Todos nós nascemos príncipes. Esse é o projeto e o destino de nossa alma. Como o Davi de Michelângelo, que já existia na pedra bruta, adormecido. Mas temos também dentro de nós a fera, o monstro.
A nossa imagem inicial, superficial, pode parecer bela. Mas normalmente ela é só uma máscara, uma imagem que construímos e que buscamos mostrar àqueles que convivem conosco. De alguma forma, nós já temos consciência do príncipe que existe em nós, da nossa potencialidade, da nossa melhor imagem, nosso “Davi”. Mas ainda somos apenas uma pedra bruta. E não é o que queremos que as pessoas vejam. Então criamos uma espécie de maquete daquilo que queremos, que projetamos ser, mas que ainda não somos, ainda não conseguimos ser. Uma máscara que substitui a nossa verdadeira imagem de pessoas ainda imperfeitas, ainda em construção. Uma beleza que substitui as falhas que não queremos mostrar.
O nosso processo de transformação não se dá aos saltos. Ele é lento, doloroso, meticuloso. Se pretendemos apressá-lo corremos o risco de dar um golpe errado, que fere a nossa alma e atinge aqueles com quem convivemos.
Não conseguimos chegar a quem verdadeiramente somos se não encararmos os nossos monstros, as nossas feras. Aquilo que ainda existe dentro de nós e que nos afasta de nosso projeto de ser perfeito. No caso do príncipe Adam, ele já tinha valores e beleza em sua alma: a amizade, o companheirismo, o apreço pelos que o cercavam, o gosto pela beleza, pelo conhecimento (tanto que tinha uma bela biblioteca e apreciava também as artes) e outras virtudes que ficam claras. Mas ainda havia o seu “monstro” que precisava ser vencido: a sua arrogância, a superficialidade de seus sentimentos, sua incapacidade de ver o valor além das convenções sociais e da nobreza de classe.
A maldição de Circe nada mais fez do que revelar esse monstro. Não foi ela, e sim ele quem o revelou. Quando agiu com ela daquela forma, ele se tornou o monstro, permitiu que ele saísse e tomasse o lugar da superficialidade do príncipe aparentado mas ainda não vivido. E ao final, quando quebrou a maldição, ele não se transformou em um novo príncipe, diferente, mas no mesmo que já era. No projeto que já trazia dentro de si.
Uma cena do filme sempre me chamou atenção, quando ele se transforma e Bela fica desconcertada, e busca primeiro a confirmação nos olhos dele. Quando vê em seus olhos que ainda é a mesma pessoa, ela se entrega a ela. O que ela queria era aquela fera, aquele valor que viu no monstro, e não um príncipe de plástico que não lhe dizia nada.
Lembro que uma coisa que sempre me questionei no filme é que os personagens do castelo, que sempre foram bons e atenciosos, acabaram compartilhando e sendo punidos por uma maldição que dizia respeito apenas a ele. Foram também castigados pelos atos dele. Mas não temos como passar por isso sem atingir aqueles que estão próximos de nós, ao nosso lado, em nosso castelo. Estes estão junto conosco, e compartilham o nosso destino. Não estão isentos disso. E um aspecto interessante é que, de certa forma, em relação a eles a maldição não se confirmou. Circe dizia que eles odiariam o príncipe quando ele virasse monstro, que teriam medo dele. Mas não foi o que aconteceu. Embora eles vissem o monstro, tinham por ele a mesma atenção, consideração e respeito que tiveram sempre pelo príncipe. O mesmo amor. Tratavam-no com o mesmo zelo amoroso, e fizeram de tudo para ajudá-lo a quebrar o feitiço, tornando-se, também nisso, os seus parceiros. Os nossos companheiros de jornada acompanham os nossos passos, compartilham os nossos desafios, vivem-nos conosco, vencem e comemoram conosco também.
Em certos momentos da nossa vida somos defrontados com o nosso monstro. Sempre há alguém que nos ajuda a revelá-los. O filme é apenas uma alegoria, uma metáfora. Na verdade, não há um único monstro dentro de nós, mas vários. Nos deparamos com eles em diferentes momentos em nossas vidas, às vezes vários de uma vez, que nos assombram e assustam quem convive conosco. Que afasta muita gente, mas mantém aqueles que compartilham verdadeiramente a nossa existência, o nosso projeto de vida. E até os aproxima. Atrai também aqueles que, como Bela, estão prontos para ver e trazer à tona o príncipe que existe além do monstro, por trás dele. Aqueles que nos ajudarão a vencer esse desafio.
Devemos, também, ter a coragem de encarar nossos monstros. O que Circe fez por Adam não foi uma maldição, mas um grande presente. Ela lhe deu a oportunidade de conhecer e vencer suas “feras”, “monstros” de sua alma que o afastavam de sua verdadeira felicidade. Embora tivesse antes uma aparência de felicidade, vivia uma vida vazia e insatisfatória. A princesa Morningstar foi um grande exemplo disso. Embora ele tenha escolhido com convicção e parecesse estar satisfeito com ela. jamais se sentiria realizado, jamais teria satisfeitos os anseios de sua alma. Permaneceria no vazio, na superficialidade. Viveria uma vida sem sentido, que não corresponderia aos seus anseios, e sequer perceberia isso. Bela tinha muito mais da companheira que ansiava. E ele jamais teria olhado para ela duas vezes se não tivesse na condição de monstro. Só o príncipe depois da fera seria capaz de valorizá-la e amá-la, e compreender que era ela quem realmente buscava, quem a faria feliz.
Vencer as nossas feras não é lutar contra elas. Isso é uma luta inglória. é, antes, conhecê-las e abraçá-las. Vivê-las e superá-las. Negar a fera foi o movimento inicial do príncipe, que só o fez sofrer. Quando ela foi mostrada a ele, tentou ignorar e prosseguir no mesmo caminho que vinha trilhando. Fazer as mesmas escolhas, até de forma mais acentuada. A princesa Morningstar foi a exacerbação de um modelo que o prendia ao que ainda era, mas que precisava superar. Diria até que apressou a manifestação da fera que havia dentro dele, por mostar a insuficiência e insatisfação com o que havia antes.
Quando nos defrontamos com essas oportunidades, não devemos fugir delas. Devemos enfrentar essa luta, olhar para quem somos e viver as nossas feras. Só assim poderemos encontrar, no fundo de nós, o nosso melhor.