Francisco de Assis e o Lobo

Existem muitas histórias a respeito da vida de Francisco de Assis. Algumas dessas histórias são reais, outras são lendas associadas à sua imagem. Uma das histórias que gosto é a história de Francisco de Assis e o Lobo de Gúbio.

Conta-se que na época em que Francisco viveu, havia em Gúbio, cidade da Itália, um lobo muito feroz. Ele vinha matando os animais das criações da região: galinhas, cordeiros e outros, e falava-se até que já havia atacado pessoas da região. Todos tinham um imenso medo do lobo, e evitavam, a qualquer custo, sair dos muros da cidade. Estavam ilhados. A situação se tornava insustentável, e os homens da cidade se reuniram com o objetivo de planejar uma feroz caçada ao lobo.

A situação estava nesse ponto quando Francisco chegou à cidade. Foi recebido com alegria e assombro, e logo ficou sabendo dos acontecimentos e aflições do povo da cidade. Ouviu com atenção, e pediu uma oportunidade para ir procurar o lobo e conversar com ele. Embora, a princípio, a proposta parecesse loucura, já se conhecia, naquela época, a fama de Francisco, de homem de bem, grande milagreiro. Já era conhecida também sua capacidade de conversar com os animais, e até as pregações que fazia para eles. A proposta, então, embora não tenha sido bem recebida por alguns, que insistiam na caçada e morte do lobo, encheu o coração dos cidadãos de Gúbio de esperança. Fez, contudo, ao mesmo tempo temer por sua integridade física: seria Francisco capaz mesmo de conversar com o lobo? Haveria o risco de que fosse morto por esse lobo feroz? Os moradores se dividiam entre a esperança e a apreensão.

E Francisco foi. A verdade é que Francisco, conhecedor da alma dos homens e dos animais, sabia que a ferocidade do lobo não poderia ser culpa exclusivamente dele. Um animal, mesmo um lobo, embora utilize os animais como alimento, não reage com ferocidade além do necessário, atacando e intimidando pessoas gratuitamente. Por isso procurou a oportunidade de conversar com ele e esclarecer a situação.

Ao chegar às montanhas, deu de cara com o lobo, que avançou para ele, pronto para se defender de uma provável agressão. Mas o olhar amoroso e a atitude serena de Francisco desconcertou o lobo, e ele parou. Francisco, então, se dirigiu a ele com bondade, chamando-o de “irmão”. Conversou com ele longamente, e soube que ele, já com certa idade, não tinha mais as mesmas condições de caçar, o que o fez aproximar-se cada vez mais da cidade e dos animais de criação, em busca de alimento. Francisco compreendeu e acolheu a necessidade do lobo. Ao mesmo tempo, também expôs o ponto de vista das pessoas da cidade. Ao final estabeleceu um compromisso: que permaneceria na cidade e cuidaria dele, amparando-o e protegendo-o até mesmo das pessoas da cidade. Oferecia sua amizade, uma casa, comida e carinho. Em troca, o lobo se comprometia a não mais atacar as pessoas e animais da cidade. Isso não seria mais necessário, já que ele teria toda a comida que precisava, e Francisco o protegeria de qualquer agressão que pudesse sofrer.

Os dois chegaram a um acordo, e Francisco retornou à cidade, já com o lobo ao seu lado, para o espanto de todos. O temor inicial se converteu em admiração. Era comum ver Francisco passeando pela cidade com o lobo ao seu lado, conversando com ele, trocando carinhos e apresentando os lugares e as pessoas.

A resistência inicial das pessoas da cidade, fruto do medo que ainda sentiam, foi sendo quebrada. Crianças e adultos se aproximavam do lobo. também começaram a interagir pacificamente com ele, fazer carinho e dar comida. Em pouco tempo o lobo conhecia e era conhecido por seus habitantes, e eram bem-vindo em qualquer casa da cidade. Qualquer um lhe alimentava quando chegava em sua casa, e ele podia até escolher onde passar a noite. Passou a haver uma amizade sincera, um companheirismo entre a cidade e o lobo. Ele até ajudava a guardar suas fronteiras de outros possíveis predadores.

Mesmo depois da saída de Francisco da cidade essa amizade continuou a existir, e o lobo morreu na própria cidade de Gúbio, já bem velhinho, tendo sua morte sido lamentada por todos na cidade.

Há inúmeras referências a essa história, que foi cantada em prosa e verso. Há quadros e até mesmo estátuas de Francisco e o lobo, retratando a amizade entre os dois.

Essa história traz algumas reflexões, que passarei a enunciar.

Quem é realmente o “lobo”? Quem é o monstro? o lobo foi mesmo o responsável pela agressão, pela inimizade existente? Pelo que Francisco pôde perceber, a responsabilidade não era unicamente do lobo, mas também, e talvez ainda mais, das pessoas da cidade, que o tratavam com medo e agressividade. Ele pensou que ali era o lobo quem precisava de proteção, e ao oferecer essa proteção conseguiu mudar a disposição dos dois lados. Ao mudar a maneira com que a cidade via o lobo, o conflito se encerrou, e passou a haver uma bela amizade.

Esse ponto de “quem é o monstro” é abordado também em outros contos e filmes. No filme da bela e a fera, na luta final, essa dicotomia fica clara: o monstro não é a fera, e sim Gaston. No filme A Forma da Água”, vencedor do Oscar, também existe essa reflexão. “Quem é o verdadeiro monstro” é a pergunta que permeia todo o filme. Em diversos episódios da história essa pergunta se repete também. Podemos fazê-la em diversos momentos de nossas vidas. E em vários deles nos percebemos, a nós mesmos, como os monstros, os agressores. É uma reflexão que devemos fazer sempre.

A outra pergunta, que é decorrente dessas, é “o que faz um “lobo”, um “monstro”? As agressões ao diferente, ao desconhecido, ao que não conseguimos entender, desperta reações naqueles que são vítimas dessas agressões, e os torna, de verdade, os monstros que idealizamos que fossem. Torna os nossos inimigos reais, fortes e maus, não porque o fossem a princípio, mas porque assim os criamos, assim os tornamos. Muitos “monstros” são apenas pessoas que foram maltratadas e precisaram se defender, e acabaram incorporando um comportamento violento e agressivo. Há referências disso em “O Fantasma da Ópera” e até mesmo “O Esquadrão Suicida”.

E a terceira pergunta: como agir diante de um “monstro”? Francisco de Assis respondeu bem essa questão: buscando vê-lo além da imagem do monstro. Buscando enxergar a sua fragilidade, o seu medo, e tratá-lo como um “irmão”. Buscar o “príncipe” e não a “fera”. Mas sem a ilusão de que o príncipe irá se revelar ao nosso primeiro contato, apenas por estendermos a mão. Isso dá trabalho, é preciso cavar fundo, buscar com força e empenho, mas afinal ele vai se revelar.

Muitas vezes é mais fácil permanecer na superficialidade do julgamento e da oposição violenta, mas o caminho da busca da compreensão certamente é mais definitivo e recompensador. Mas é importante salientar, nem sempre ele é possível. Às vezes temos que permitir que nossos irmãos sigam o seu caminho, porque eles simplesmente ainda não estão prontos para compreender uma abordagem amiga. De qualquer modo, estimular e alimentar a violência deve ser evitado em quaisquer circunstâncias.

Mais uma pergunta: e quando nós somos os “monstros”? Quando nós somos vistos como os maus, o atraso, com pitadas de psicopatia? Aí é bem difícil. Como no caso anterior, a violência não resolve, só piora a situação. Na maioria dos casos, a solução mais fácil  é retirar-se e buscar reconstruir-se em outro espaço onde não haja essa resistência e essa imagem. Mas isso nem sempre é possível, e quase nunca é a melhor solução. Primeiro, porque levamos o que somos aonde quer que vamos. Se somos o monstro aqui, é possível que em algum momento nos tornemos também esse monstro mais além. Bastará uma oportunidade de revelá-lo. Claro que isso exige uma análise mais acurada (existe, por exemplo a possibilidade de você ser um “ganso” no meio de “patos”, nunca chegar a ser compreendido naquele ambiente e ser reconhecido em outro lugar). O fato é que temos sempre que nos perguntar a razão de termos nos tornado esse monstro, e o que podemos fazer a respeito.

Por fim, como lidar com os monstros que temos dentro de nós? Temos algumas respostas: não alimentar a violência e agressão que nos são dirigidas, buscar compreender as razões que levaram a essa transformação em monstros, qual a nossa parcela de responsabilidade nisso, e o que podemos fazer para modificar essa situação.

A verdade é que enfrentar os nossos monstros não é lutar com violência contra eles. Isso só os tornará mais fortes, impiedosos e incontroláveis. O que devemos fazer é reconhecê-los, abraçá-los e chamá-los pelo nome (identificar as questões que nos afligem e assombram é uma parte importante desse processo). Dialogar com eles, compreendê-los, saber o que são, quais suas necessidades e como podemos atendê-las.

Para Francisco, foi possível conciliar o monstro e as pessoas da cidade. Ele precisava apenas se alimentar, e ser acolhido. As pessoas tinham medo do monstro que elas mesmas criaram. Contemplando as necessidades do lobo com equilíbrio, consideração e amor, e eliminando as razões que o levaram a ser um monstro, na exagerada e desnecessária violência que resultou da reação ao medo e à falta de compreensão, se obteve a paz.

Entre os elementos do folclore vinculado a essa história de Francisco e o lobo, uma delas me chama atenção: uma música que achei quando pesquisava sobre esse tema, que se chama “Hermano Lobo”. Eis uma tradução livre da letra:

Por que te tornaste um lobo?

Talvez eu não tenha te amado bastante

Por que te tornaste um lobo?

Talvez não tenha sabido te amar

Por que me atacas com raiva

E queres morder minha mão?

Talvez eu não tenha sido teu irmão

E nunca tenha te aberto o meu lar

 

Por que nos odeia tanto?

Talvez tenha te odiado primeiro

Por que nos atacas tanto?

Talvez eu tenha te ensinado a atacar?

Por que me atacas com raiva

E queres morder minha mão?

Talvez eu não tenha sido teu irmão

E nunca tenha te aberto o meu lar

 

Por que vives no escuro?

Talvez eu tenha te negado a luz

Toda a sua tristeza

Nasceu de minha crueldade

Por que me atacas com raiva

E queres morder minha mão?

Talvez eu não tenha sido teu irmão

E nunca tenha te aberto o meu lar

 

Hoje venho chamar-te irmão

E te dar a paz e bem

Hoje venho chamar-te irmão

Para juntos voltarmos a amar

Nós homens, você sabe, somos

Mais ferozes que o lobo mais feroz

Hoje quero te dar minha mão

E abrir-te por fim o meu lar.

 

Apesar de ser uma música bem simples, bem singela, eu sempre me emociono quando a ouço.

Hoje não vou fazer as análises e respostas. Vou deixar esse trabalho por sua conta. Vou apenas fazer umas perguntas para ajudar:

Que lobos já encontrou em sua vida? Quais ainda existem nela? Qual a sua relação em relação a eles, ainda hoje?

Quais os lobos com que convive? Qual a sua responsabilidade nisso?

Que lobos já despertou nas pessoas? E em si mesmo?

Que lobos você já foi? Que lobos já despertaram em você? Como foi sua reação a isso?

Quais são os seus lobos internos? Como tem lidado com ele?

E quando você identifica os lobos internos das outras pessoas, até próximas a você (familiares, amigos, colegas de trabalho)? Como reage a eles.

Que a lição de Francisco nos inspire e liberte.

Um grande abraço, e para combinar com o clima do texto, Paz e Bem!

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